Os donos da crise

 André Luís Teles de Menezes Salomão e 

Luhan Reigoto Martins 

“Our public credit is good, but the abundance of paper has produced a spirit of gambling in the funds, which has laid up our ships at the wharves as too slow instruments of profit, and has even disarmed the hand of the tailor of his needle and thimble. They say the evil will cure itself. I wish it may; but I have rarely seen a gamester cured, even by the disasters of his vocation.” Thomas Jefferson, Letter to Gouverneur Morris, 1791

A nova e auto-proclamada “crise do capital mundial” experimentada pelos agentes econômicos a partir de 2007/08 ainda encontra, após quatro anos de deflagração, alguma dificuldade de ser colocada em seus termos fundamentais. Mais importante, restam aspectos demasiadamente contraditórios na exposição corriqueira das suas ulteriores qualidades. E a citação de Thomas Jefferson não é inoportuna: como o eixo crítico, a abundante financeirização urge confrontos teóricos sobre sua função e contrapartidas.

Sobre os mecanismos pelos quais se dispersou a suposta crise do capital foram exaustas explanações atrás de explanações, fornecendo inequivocamente um contexto vulgar de espoleta e inflamação. É do conhecimento do mundo mineral: empréstimos fartos e de alto risco, com níveis de alavancagem soberbos e uma ampla rede financeirizada de hipotecas, transacionadas em estimas duvidosas de avaliadoras comprometidas; seguros astronomicamente instáveis, arrolados em instrumentos de liquidez desregulados (derivarivos). O contágio fica por conta do volume de papel negociado a toque de caixa, sabendo-se dos perigos implícitos, apodrecidos no estômago do sistema financeiro mundial. Posteriormente, os mesmos papéis seriam contornados, na bacia das almas, para os cofres públicos, migrando também as adversidades de sua degenerescência. Isto, no entanto, não cobre o conteúdo qualitativo que demanda uma crise do capital.

O sociólogo James Petras discorda veementemente destes termos. Para ele, “uma verdadeira crise capitalista afetaria negativamente as margens de lucro, os ganhos brutos e o acúmulo de ‘pilhas de dinheiro’”. Movendo-se em direção oposta, as tais profit margins dos S&P 500 (índice das 500 ações mais importantes no mercado) saltaram de 6% para 9% do PIB norte-americano desde 2008, semelhante pulo encontrado apenas distantes três gerações anteriores!  Símbolo das intempéries da crise, a General Motors auferiu nada mais nada menos que U$ 7,6 bilhões em 2011, superando o último recorde de U$ 6,7 bilhões estabelecido em 1997. Portanto, antes da associação indevida dos termos, é necessário dispor melhor dos dados.

Outra contradição pode ser observada nas expectativas de movimentos sociais amplos. A suposição de uma frente irascível e combativa, relegada de empregabilidade, parece converter o todo num abstrato inócuo.  Por certo, as taxas de desempregos em países como a Espanha (23,6%), Grécia (21,0%) e Portugal (15,0%) são alarmantes, mas descompassadas com as que se verificam no norte da Europa, como Alemanha (5,7%), Holanda (4,9%), Áustria (4,2%) e até a Finlândia (7,4%), uma das pérolas da crise, navegando em relativo céu de brigadeiro. Brasil e EUA não ficam atrás, registrando 6,0% (média em 2011) e 8,2% (patamar registrado em março) respectivamente. Desta forma, fica comprometido o discurso sobre a inevitável difusão de fenômenos como o Occupy Wall Street em escala e magnitude semelhantes às manifestações gregas, portuguesas e espanholas. Entretanto, é temerário advogar assertivamente contra, levando-se em consideração que a taxa de desemprego aumentou em 18 países membros da UE, em contraste com a queda em apenas 8 membros.

A partir daqui, é possível, com alguma razoabilidade, afastar a hipótese de uma crise tanto do capital quanto em afecção generalizada. Em cortes mais realísticos, a crise pode ser encontrada na fragilidade dos países do sul europeu e na recalcitrante perda de liquidez do sistema financeiro da região do euro. Mas isto, de todo modo, não explica como “magicamente” as taxas de lucro retomaram seus patamares mais louváveis. Na zona europeia, é fácil deduzir que a instabilidade de uns reforçou polos hegemônicos pré-existentes. A Alemanha, mais que incólume, registrou um superávit comercial de $ 158 bilhões de euros, depois de marcar $ 155 bilhões no ano anterior.  Enquanto na potência germânica trabalhadores requerem 6% de reajuste salarial, gregos têm de arcar com um corte de 20% nos salários em acordo com o programa austero recém-implantado. E quanto aos EUA? Onde estão as consequências norte-americanas?

Se não pôde ser visualizada através das taxas de desemprego – desconsiderando provisoriamente as inúmeras críticas metodológicas na composição do dado –, a crise emerge na deterioração do trabalho e da classe média. Este, evidentemente, não é apenas um fenômeno grego. Em 2011, a economia estadunidense cresceu 1,7%, enquanto o salário médio caiu 2,7%.  Muito do supracitado lucro obtido pela GM advém do congelamento dos fundos de pensão e a extração de maior produtividade de menos trabalhadores, inclusa a oportuna barganha de novos contratos com cortes nos salários-hora. Em 2010, 93% dos ganhos adicionais de produto em relação ao ano anterior – U$ 288 bilhões – foram ao 1% dos contribuintes com renda de pelo menos U$ 352,000, um aumento de 11,6% dos seus respectivos pagamentos anuais. Esmiuçando, verifica-se que destes ganhos adicionais no ano de 2010 37% foram a 0,01% de contribuintes com renda média de U$23,8 milhões. Em perspectiva, a mobilidade social entre gerações no país é uma das mais baixas da história, desbancada por países como a Alemanha, Dinamarca e Finlândia.

Por final, retome-se à reflexão do falecido presidente: o crédito, como fonte primeira desta crise que aporta com intensidade, sem cadafalsos qualitativos, nos países periféricos europeus e nos EUA, é simultaneamente dádiva e maldição. Há muito, numa Alemanha bismarckiana, o crédito era parte da “santa trindade” articulada entre governo, banco e indústria, com vistas ao planejamento. Canalizava-se, portanto, em função do desenvolvimento econômico e tinha como contrapartidas somente os ganhos auferidos de investimentos produtivos. Muito ao contrário dos empréstimos “improdutivos”, praticados correntemente, em que se cobra de fontes externas: Governos pagam com a receita, trabalhadores com suas rendas ou qualquer ativo que possam empenhar à dívida. Esta dicotomia foi resolvida na Primeira Grande Guerra, segundo o economista Michael Hudson, onde prevaleceu a histórica hegemonia política inglesa e norte-americana sobre a pleiteante alemã, não obstante os magníficos resultados produzidos.

Se a Alemanha situa-se algo distante daquela realidade, mais próxima está se comparada a seus coirmãos desenvolvidos. O tipo de crédito praticado nos EUA e em países montados em dívidas soberanas é o grande algoz do desenvolvimento e recuperação em seus termos socioeconômicos. O pagamento soez das dívidas de empréstimos “improdutivos” parece carrear consigo um prolongamento recessivo, diminuindo consumo e investimento – recentemente, as bolsas reagiram negativamente à notícia de que o crescimento dos bens-duráveis nos EUA ficou bem abaixo do esperado. Mais longa aparenta ser a caminhada dos que, inadvertidamente, conduzem a toda sorte de bênçãos os seus mais torpes apostadores. Neste conflito, os bancos sairão ganhando; consequentemente, o capital.